Olhar da Crítica

A VISITA


‘A Visita’

Há visitas que são bem vistas (e bem-vindas). Outras, nem tanto. E há visitas que chegam sem avisar, sem pedir licença, sem saudar ninguém. A lembrança é assim. Quando certas imagens, conversas, momentos vividos se presentificam, a existência ganha outros significados. O indivíduo se projeta a não-lugares, rememora não-conversas, relembra não-sonhos, vivencia não-vidas... Ou mil vidas...
O espetáculo ‘A Visita’ fala sobre tudo isso. Ou não. O texto, da lavra do genial Moncho Rodriguez (mesmo autor de ‘Enluarandas’), revela um tal António que, ao visitar o local de sua infância, depara-se com um deserto de gente e de bicho, mas um conglomerado de memórias e de sentimentos escondidos nos armários e nos porões da subjetividade. “Aqui, os homens são meio gente, meio barro – como as casas – e meio bicho”, diz, em certo momento.
Como toda grande expressão artística, a peça propicia múltiplas interpretações, permitindo que o espectador faça inferências, remetendo a histórias não ditas (ou mal-ditas) que estão imiscuídas na essência de cada um de nós. Afinal de contas, “lembrança é uma coisa sem futuro, que só leva a gente pra trás”, como é dito no próprio espetáculo. Leva a gente pra trás e pra dentro. Espelhos, significados, experiências... Questões como família, sexualidade, amizade, amor, afetos, permeiam a obra, que consiste em uma beleza rara, de sensibilidade extrema, capaz de tocar os recônditos mais profundos da alma dos que estão na plateia.
O espetáculo está em cartaz durante todo o mês de agosto, sempre aos sábados, a partir das 20h, no Teatro do Sesc (Rui Limeira Rosal). A direção é do magistral Nildo Garbo e a iluminação de Edu Oliveira. Em cena, o ator Severino Florêncio, na melhor versão dele mesmo. É pertinente salientar que ‘A Visita’ não é daquelas peças para ser vistas ‘de todo jeito’. Não. É necessário estar em consonância com a energia fluídica que emana do texto e permeia cada cena. Contudo, acredito que seja impossível entrar no teatro ‘de todo jeito’, assistir esse espetáculo e voltar do mesmo jeito. A arte inquieta, incomoda, coloca pulga nas orelhas, dá pontadas no coração, é uma fonte de sorrisos e lágrimas ao mesmo tempo. Coisa de doido. Só vendo. Minto. Só sentindo. E sem se conter...
Na última semana, pelo Facebook, o professor Edson Tavares fez questão de comentar: “Severino Florêncio está excelente, demonstrando o quanto a maturidade e o talento, juntos, num ator, podem tornar um espetáculo realmente espetacular!” Ôxe. E se até ‘o homem’ disse isso, quem de nós, simples mortais, pode contestar? A grande atriz Maria Alves também fez dela as palavras do professor. Então, ‘vamo simbora’ fazer essa visita! E nos revisitarmos, percebendo o quanto somos os mesmos. Ou não.

Jénerson Alves

Agosto de 2015
Jornal Extra de Pernambuco


Deus danado

Mostra Rui Limeira Rosal 2010 – SESC CARUARU

Texto: João De

Há visitas que são bem vistas (e bem-vindas). Outras, nem tanto. E há visitas que chegam sem avisar, sem pedir licença, sem saudar ninguém. A lembrança é assim. Quando certas imagens, conversas, momentos vividos se presentificam, a existência ganha outros significados. O indivíduo se projeta a não-lugares, rememora não-conversas, relembra não-sonhos, vivencia não-vidas... Ou mil vidas...

O espetáculo ‘A Visita’ fala sobre tudo isso. Ou não. O texto, da lavra do genial Moncho Rodriguez (mesmo autor de ‘Enluarandas’), revela um tal António que, ao visitar o local de sua infância, depara-se com um deserto de gente e de bicho, mas um conglomerado de memórias e de sentimentos escondidos nos armários e nos porões da subjetividade. “Aqui, os homens são meio gente, meio barro – como as casas – e meio bicho”, diz, em certo momento.

Como toda grande expressão artística, a peça propicia múltiplas interpretações, permitindo que o espectador faça inferências, remetendo a histórias não ditas (ou mal-ditas) que estão imiscuídas na essência de cada um de nós. Afinal de contas, “lembrança é uma coisa sem futuro, que só leva a gente pra trás”, como é dito no próprio espetáculo. Leva a gente pra trás e pra dentro. Espelhos, significados, experiências... Questões como família, sexualidade, amizade, amor, afetos, permeiam a obra, que consiste em uma beleza rara, de sensibilidade extrema, capaz de tocar os recônditos mais profundos da alma dos que estão na plateia.

O espetáculo está em cartaz durante todo o mês de agosto, sempre aos sábados, a partir das 20h, no Teatro do Sesc (Rui Limeira Rosal). A direção é do magistral Nildo Garbo e a iluminação de Edu Oliveira. Em cena, o ator Severino Florêncio, na melhor versão dele mesmo. É pertinente salientar que ‘A Visita’ não é daquelas peças para ser vistas ‘de todo jeito’. Não. É necessário estar em consonância com a energia fluídica que emana do texto e permeia cada cena. Contudo, acredito que seja impossível entrar no teatro ‘de todo jeito’, assistir esse espetáculo e voltar do mesmo jeito. A arte inquieta, incomoda, coloca pulga nas orelhas, dá pontadas no coração, é uma fonte de sorrisos e lágrimas ao mesmo tempo. Coisa de doido. Só vendo. Minto. Só sentindo. E sem se conter...


Na última semana, pelo Facebook, o professor Edson Tavares fez questão de comentar: “Severino Florêncio está excelente, demonstrando o quanto a maturidade e o talento, juntos, num ator, podem tornar um espetáculo realmente espetacular!” Ôxe. E se até ‘o homem’ disse isso, quem de nós, simples mortais, pode contestar? A grande atriz Maria Alves também fez dela as palavras do professor. Então, ‘vamo simbora’ fazer essa visita! E nos revisitarmos, percebendo o quanto somos os mesmos. Ou não.

Direção: Nildo Garbo

Produção: Grupo de Teatro Arte em Cena

Análise: Luiz Felipe Botelho

Obra prima do recente teatro brasileiro, Deus danado é uma unanimidade de impacto imediato, montada em praticamente todas as regiões do país. Escrita pelo ator, diretor, dramaturgo e professor João Denys de Araújo Leite, a peça conta, em treze jornadas, a evolução da relação entre Teodoro e seu afilhado Luiz que, como pai e filho, avançam tempo adentro no mesmo espaço claustrofóbico de uma relação de dependência, amor e ódio. Trata-se de uma das raras abordagens essencialmente masculinas – e talvez a mais ampla, honesta e profunda – sobre o universo mítico das cicatrizes de uma sociedade patriarcal que subjazem e continuam a se ramificar na psiquê do povo brasileiro, ocultas sob múltiplos disfarces. Requintada na poética, transbordante de imagens e generosa nas possibilidades que oferece a diretores e atores, a peça exige, no entanto, entrega incondicional dos intérpretes e zelo em cada detalhe de sua encenação, sob pena destes verem o texto sobressair-se no palco por seus próprios méritos, enquanto literatura teatral.

Esta montagem dirigida por Nildo Garbo é a quinta versão que assisto de Deus danado e a quarta realizada por pernambucanos[1], sendo a que traz a composição mais impressionante de Teodoro, aqui interpretado pelo caruaruense Severino Florêncio. Sabidamente disciplinado, ele apresenta uma interpretação segura e meticulosa, limpa de clichês regionais e maneirismos de cena, introduzindo uma naturalidade que não trai a ambiência mítica da peça – ao contrário, dialoga com ela. É justamente através desse diálogo interpretativo e fluente entre arquétipos opostos/complementares (o do Homem e o do Deus-Pai) que Florêncio faz o personagem transitar dos mais candentes traços de humanidade à instantes onde parece encarnar uma divindade masculina, cujo poder tanto pode criar e acolher quanto acuar e destruir. Isso não é efeito exclusivo de intuição e talento, mas de trabalho sério e árduo sobre as ferramentas do ator e esse ator sabe o que faz, resultado de anos de experiência e paixão à arte. Saliente-se aí o nítido domínio que Florêncio demonstra sobre corpo e voz e sobre o uso do espaço e dos elementos, bem como o modo como administra a dinâmica com Rafael Amâncio, que interpreta Luiz, ajudando a criar e manter uma necessária química entre os dois atores.

Jovem e promissor como intérprete, Amâncio equilibra a dinâmica entre Luiz e Teodoro, com dedicação e disponibilidade e, mesmo não sendo tão experiente quanto seu companheiro de cena, é evidente a busca pelo aprimoramento permanente do seu trabalho. Constatei a evolução desse ator comparando seu desempenho nas apresentações em Recife, Arcoverde e Caruaru. Curiosamente, seu maior desafio parece ser aprender a lidar com sua própria força. Capaz de mobilizar facilmente grande quantidade de energia e oferecê-la na cena, Amâncio demonstra alguma dificuldade para conter, concentrar e canalizar adequadamente tamanha força. Somado a isso, ele também parece influenciado por certo gênero de interpretação demonstrativa, tendendo à investir numa caracterização de tons melodramáticos. Isso o leva a alguns excessos denunciados por expressões que podem parecer caricaturais no contexto geral da encenação, que pede intensidade interior mas não necessita que ela seja sublinhada pelas expressões faciais. E o mais interessante é que Amâncio sabe mobilizar toda a imensa gama de emoções que seu personagem vive no decorrer da peça. Seu desafio será aprender a conter – jamais negar ou esconder – essas emoções de modo que a platéia as veja projetadas como energia emanando de sua atuação. Vendo o bom trabalho que ele faz e o interesse em aprofundar seus potenciais, não tenho dúvidas que muito em breve ele terá superado as dificuldades que mencionei acima.

A encenação de Nildo Garbo – que também assina a cenografia os figurinos e a maquiagem – é de uma ousadia desconcertante, a começar pelo próprio cenário, uma espécie de grande nicho composto por inúmeros signos ligados à vida (e à morte) sertaneja. São galhos, lampiões, ossos, tudo em grande quantidade, o que pode levantar a questão do encenador estar sendo compondo um cenário decorativo. Não é o caso. Cada objeto ou galho parece emitir uma nota própria e todos eles, em conjunto, ecoam como uma espécie de estranho e harmonioso coro de signos, em perfeita consonância com a trama e com as questões que ela coloca. Do mesmo modo que Teodoro – e posteriormente Luiz – encarnam a aspectos da bipolaridade Homem/Deus-Pai, a cenografia remete à sua contraparte feminina, como um útero-sertão que carrega suas crias e sua história, ora acolhendo como a Grande Mãe, ora oprimindo como uma Ânima-Sombra, destruidora de sonhos.

Essa base bipolar tão bem desenvolvida na cena criada por Garbo se desdobra também na caracterização da Alma de Luzia, personagem silencioso envolto em mistério, encarnado com pertinentes contenção e sobriedade pela atriz Welba Sionara. Na concepção visual do encenador, Luzia incorpora múltiplos aspectos – criadores e destruidores – dos arquétipos associados à maternidade. Assim, através da ação de Sionara, o que a princípio parece um fantasma feminino, deixa também entrever alternadamente em sua dinâmica, aspectos de uma Nossa Senhora, de uma ave de paz, de uma harpia devoradora de homens ou, simplesmente, de uma mulher humana cheia de desejos humanos.

A iluminação de Edu de Oliveira se integra à aura mítica que marca a encenação, privilegiando os âmbares e dando uma sensação de que a existência é feita dos momentos que definem as auroras e ocasos. As demais cores são reservadas para pontuar os mistérios que vêm com as noites, transtornos e alumbramentos que fazem avançar as transformações no mundo dos humanos.

Toda essa requintada construção não deixa dúvidas de que a platéia está sendo convocada a imergir numa cena de sonho, onde o cotidiano – como costumamos vê-lo – não tem vez, apesar do modo contundente com que vemos serem levantadas questões essenciais e bastante concretas sobre a ação e a formação do ser humano em qualquer cultura. A força dessa construção confere tamanha nitidez à cena, que qualquer elemento que destoe desse conjunto logo será identificado e parecerá estranho. Falemos de alguns deles.

A dinâmica do sino que pontua algumas cenas não precisaria ser tão óbvia. Numa das cenas de sexo, por exemplo, as batidas do sino se aceleram num crescendo, anunciando o orgasmo. Essa pontuação fica redundante, pois vemos claramente o que os personagens estão fazendo e é possível ver com igual clareza que a respiração e o ritmo da ação apontam para a iminência e posterior consecução do orgasmo. Assim, ao simplesmente enfatizar o que já está claro, o sino parece “sobrar” na cena, soando irritante e sem sentido, lembrando uma sineta escolar. Mais impacto teria se as suas batidas se mantivessem no ritmo lento e cadenciado de uma chamada para a missa, destoando do frenesi do desejo sendo satisfeito, como se evidenciasse a presença fria e atenta da Igreja até mesmo na intimidade das alcovas.

Outra cena que merece atenção é a finalização de um dos momentos mais belos e difíceis da peça, que é a cena de amor entre Luiz e Luzia. Até o momento em que ambos fazem amor, toda a movimentação flui bem, mas o desmanchar da cena, devido à instabilidade das posições dos corpos dos atores, precisa ser feita com cuidado redobrado, para que se mantenha no ritmo e na fluidez que se estabeleceu no início. Esse é um momento em que estamos diante de uma cena de sonho. Os atores devem se movimentar como se estivéssemos contemplando um sonho. Qualquer gesto instável ou descuido podem comprometer esse efeito.

Atenção semelhante deve ser dada a cenas alegóricas, como a do masturbação/trigo debulhado. É importante que o encenador defina como quer trabalhar a metáfora. Ao mostrar o ator colocando um milho onde deveria estar o próprio pênis e fazê-lo movimentar-se como se masturbasse a espiga, toda a metáfora se desfaz, dando a impressão de que a encenação tem pudor em mostrar o que está acontecendo ali. Para enfatizar a metáfora, seria necessário deslocar a espiga daquilo que ela representa e desconstruir os gestos de modo a apenas sugerir a masturbação. A dificuldade está em manter a força do momento de excitação e prazer e redesenhar isso numa condição distinta da ação original. Uma outra alternativa seria abandonar a metáfora e assumir a exposição do ato em si, de modo que o ator simule uma masturbação real, referindo-se ao milho apenas no seu texto. São dois modos de se trabalhar o impacto desse momento sem desperdiçar a possibilidade poética nem parecer que se está com medo de ser explícito.

A última observação refere-se ao modo como se destaca – no sentido negativo – a introdução de duas peças da MPB em momentos-chave da peça, como é o caso da Bachiana n.o 5 [2] e Carcará[3]. No meu entender, músicas como essas estão tão carregadas de seus próprios símbolos, que estes dificilmente deixariam de se impor ao serem encaixadas em uma outra obra. Apesar de sua inegável beleza e impacto, elas lembram um passado já não tão recente, um momento particular da história do Brasil, perpetuando-se na associação com discursos que parecem desconectados tanto daquilo que testemunhamos no presente e, por conseguinte, do restante da própria encenação. Ao se imporem com seus próprios contextos, essas obras parecem amesquinhar a amplitude de abordagem que até então vinha sendo construída ao longo da peça, fazendo-a perder o viço, o encantamento e parecer datada e limitada.

É interessante notar que o efeito descrito acima não acontece com uma obra igualmente popular utilizada na abertura, A triste partida (letra de Patativa do Assaré). Entoada à capela pela voz grave e marcante do próprio Patativa, trata-se de uma gravação rara da conhecida obra, sem arranjos que a situem no tempo e no espaço. Por essas características, harmoniza-se diretamente com a crueza do cenário e da própria encenação que se inicia. Diante desse sensação de estar diante de algo antigo que se mostra estranhamente novo, o espectador se mobiliza e se pergunta se tudo o mais será assim ao longo da peça. Ele ainda não sabe que a resposta será afirmativa e que a experiência será inesquecível, no melhor dos sentidos.

[1] A primeira foi a do próprio João Denys, em 1993, no Teatro José Carlos Cavalcanti Borges (FUNDAJ), com Gilberto Brito (Padrinho) e Júnior Sampaio (Luiz), seguida das montagens de Augusta Ferraz (2002, Recife - PE), Alda Valéria (montagem de 2003 assistida em 2005 – Salvador - BA) e Charlon Cabral (2007, montagem de Limoeiro assistida em Recife).

[2] De Heitor Villa Lobos, aparentemente na interpretação da soprano Bidu Sayão.

[3] Maria Betânia canta a marcante obra de João do Valle e João Cândido.


DEUS  DANADO 

Análise de Maria Rita

Lendo o programa fica pouco para falar, pois se percebe uma dramaturgia que fala por si mesma e mais, ela interage com a montagem de modo que fica difícil de saber onde começa uma e termina outra.

Os temas abordados nos propiciam uma reflexão de tantos “porquês” que nos fazemos; como lidamos com o princípio de nossas vidas, nosso desamparo existencial, como nos isolamos em nossas afetividades.  A seca que vai além da natureza, nossa seca interior, nosso vazio, esse lugar interior que raramente preenchemos, a não ser em contato com o outro, quando trocamos nossas dúvidas e questionamos nosso universo humano.   Uma dramaturgia que foca fundo em crenças, em nossos valores individuais e sociais.  Uma dramaturgia que põe o dedo em nossas feridas existenciais.

Para falar de “Deus Danado” creio que preciso ver e reler mais vezes, pois se trata da complexidade existencial humana.  O autor foi fundo em sua busca como homem e como artista: admirável. 

Montagem cênica  - O cenário, o figurino, a disposição cênica dos adereços, a maquiagem, a iluminação, todos tiveram seu papel para traduzir, confirmar o conteúdo do texto dramático.  O cenário bastante criativo, bem como os figurinos e adereços cênicos.  Estes descreviam o interior da alma dos personagens. 

Iluminação  - Seguiu o mesmo caminho, lúgubre, silenciosa da “sina” não apenas do nordestino, como também do processo de degradação em que se encontra a raça humana.  Ou seja, “salve-se quem puder”. E que por certo não era este o nosso caminho, nossos sonhos.  

Interpretação - Os atores atuam num processo de comunhão, de entendimento dos personagens como se cada um fosse a porta de entrada e saída deles mesmos.  Eles alimentam-se da energia um do outro.

O ator Severino Florêncio absorveu de tal forma os conteúdos do texto que, quando ele se movimenta é como se carregasse os restos trágicos do ser humano.  Os pedaços de corpos humanos que sobraram, o lado escuro e tenebroso da alma humana.

O personagem do Rafael em sua trajetória tenta sair daquele estado de engessamento dos sentimentos, sonhos, esperanças, mas não consegue.  No máximo se dá a inversão dos papéis.  Isso acontece na peça, mas também está acontecendo, hoje, com a nossa juventude, reproduzindo e aprimorando esse engessamento, essa atrofia do lado humano de nós: seres humanos.  O sucesso está no dinheiro e não no Ser. 

Severino em sua interpretação, praticamente, não move os músculos do rosto, todo o trabalho interpretativo está demonstrado pelo corpo e pela voz.  Os tempos e silêncio entre as falas calam fundo em nossas angústias e dores humanas. 

Música - A meu ver é o único elemento que não se soma à pintura em movimento do Deus Danado.  

Mostra Rui Limeira Rosal 2010 – SESC CARUARU

24/04/2010

Espetáculo: Deus Danado

Texto: João Denys

Direção: Nildo Garbo

Produção: Grupo de Teatro Arte-em-Cena

Análise: Érico José Souza de Oliveira

Garbo Danado...

            Conheci pessoalmente o encenador Nildo Garbo nesta minha visita a Caruaru. Fiquei triste por não tê-lo conhecido há tempos atrás. Há exatos vinte anos, período em que conheci os talentosíssimos artistas Severino Florêncio e Maria Alves, eu era um menino, mas sinto que se, nesta época, tivesse travado contato com a obra de Garbo, meu horizonte teatral se abriria em múltiplas perspectivas.

            Fiquei honrado em tê-lo no curso que dei a encenadores e atores durante o mês da Mostra de Teatro Rui Limeira Rosal 2010. Sempre atento, atencioso e onírico, figura emblemática do teatro pernambucano, com experiência de décadas e vivências diversas no Nordeste e Sudeste do Brasil, Nildo representa um tipo de teatro que me fascina. Um teatro monumental, imagético, de uma plástica luxuriante. Tudo nele pulsa sensorialidade, sensualidade, frescor, visceralidade, transpiração.

            Já tive a sorte de trabalhar com o texto “Deus Danado” do meu eterno mestre do teatro João Denys Araújo Leite, um dos maiores teatrólogos do país. Na experiência que tive, na orientação de uma aluna de direção teatral em sua formatura, fiz toda a preparação corporal dos atores Psit Motta e Bira Freitas (grandes talentos soteropolitanos), além de trabalhar todo o universo da obra em laboratórios, levantar todas as atmosferas do espetáculo, encaminhar a criação das personagens com os atores e construir mais de setenta por cento do espetáculo através de improvisações das cenas. Também concebi figurino e maquiagem.

O que me marcou neste processo foi a experiência deliciosa com os atores e a intimidade com o universo de João Denys, meu amadurecimento profissional como educador e como artista, através da complexidade, beleza poética e força dramática de “Deus Danado”.

Nildo Garbo também já havia travado contato com a obra de João Denys quando assistiu à peça dirigida pelo próprio autor (um mago da encenação, diga-se de passagem). Em conversas, Nildo me falou do impacto que teve com o espetáculo e com o texto. Coisas que só João Denys promove nas pessoas de sensibilidade e inteligência aguçadas.

São necessárias essas duas qualidades para saborear João Denys. E Nildo Garbo as tem de sobra. Ele também é um danado. E o encontro dessas grandes cabeças do teatro começou aí, quando Garbo aceitou montar a peça de Denys a pedido de Severino Florêncio, produtor e protagonista do espetáculo. É gente danada demais junta, meu Deus!

Severino Florêncio é um caso à parte. Falarei mais à frente sobre ele. Agora quero me prender à encenação de Nildo, que me arrebatou desde o primeiro momento, quando entrei no teatro e me deparei com um mundo de vermelho sobre o palco. Um mundo à primeira vista indecifrável de tantos elementos, tantas informações, tantas sombras e tantos volumes.

 

Teatro de Imagens: uma luxúria visual e sensorial

Uma imagem luxuriante se apresentava diante de meus olhos. Era um quadro de abstração cubista, uma visagem de forte impacto dramático, uma vermelhitude infinita, uma negridão infinda, uma versão sertaneja de “Guernica”.

            Aos poucos, as formas vão tomando relevo aos nossos olhos e o que parecia abstrato vai sendo lido aos poucos, aos pedaços. Caveiras de boi penduradas, cercas de galhos secos, cabaças, gaiolas, altares, uma inundação de folhas secas no palco, cruz, estrela, cordas, candelabros.

Uma gama de elementos que, em seu silêncio, se comunicavam conosco de forma pulsante. Falavam-nos de uma história de nós mesmos, de um universo ao mesmo tempo muito longínquo e próximo, de um tempo de memória ancestral que ainda reverbera em nós. Um tempo imemorial.

Este tipo de tratamento visual não pode ser chamado de cenário. É muito pouco. Nem de cenografia. É uma instalação, na mais contemporânea concepção do termo. Se seu criador a levasse para alguma bienal, certamente teria acolhimento entre as salas de propostas inovadoras de artes plásticas. Seria um evento ter uma bienal com as instalações cênicas de Nildo Garbo. Elas falam por si, têm vida própria, têm uma história amalgamada em cada elemento, em cada contorno, em cada silhueta.

Aliás, Garbo assina, além da encenação, toda a direção de arte, incluindo figurinos e maquiagem, com a desenvoltura de quem conhece todos os vieses de sua arte, com um requinte de quem vê beleza na rude paisagem do agreste interior de cada ser humano.

A concepção de iluminação agrega o valor exato ao trabalho deste artista plástico da cena, criando atmosferas e delineando espaços, recortando perspectivas, dinamizando o olhar do espectador a cada momento para um ponto do espaço. As soluções de fontes de luz lateral contribuem em muito para criar uma sensação de profundidade e amplitude. Um trabalho primoroso de Edu de Oliveira.

O único ‘porém’ da iluminação diz respeito a alguns pequenos deslizes de execução, como atrasos em relação ao que o texto traz de mudança de dia para a noite e passagens bruscas entre o amanhecer e o anoitecer. No entanto, não se anulam os momentos de rara poesia luminosa, como a construção de espaços íntimos entre as personagens com focos fechados em pino e a alternância de claro e escuro provocada nos espaços e corpos sobre o palco.

Os elementos de cena também trazem em si uma constelação de signos, como a carroça que entra com os dois personagens, ao mesmo tempo meio de transporte e prisão em um mundo sem perspectivas. Os sinos que anunciam os animais e as transformações interiores das personagens. Os lampiões que iluminam o caminho, as memórias, os fatos, as sombras.

Aliás, a grande metáfora do espetáculo se refere ao que é escondido, guardado, sonegado, “entre o escuro e o claro, a noite e o dia”, como diz João Denys, e está impressa em dois elementos: a iluminação, que mobiliza o que se vê e o que se guarda, e a cortina erguida no centro alto da cena, que ora simula, ora delineia as ações. Não é à toa que a primeira aparição de Teodoro (Severino Florêncio) e Luiz (Rafael Amâncio) se dá num jogo oriental de teatro de sombras, símbolo maior deste conceito claro (conhecimento) / escuro (ignorância), estruturado já na feitura do texto e amplificado pela mão da encenação.

O texto, por si só, já contém uma força poética, dramática e imagética extrema. Garbo foi altamente corajoso em aceitar a empreitada de montar a peça que havia visto sob a direção do próprio autor. Foi também ousado em sua iniciativa, a ponto de conseguir transfigurar a dramaturgia de João Denys em força telúrica e teatral, amalgamando assim o escrito impresso no papel em tridimensionalidade latejante de rudeza e sensualidade. As metáforas que Garbo construiu são o extrato mais fino do texto. Uma alquimia alucinante.

Várias são as imagens hipnóticas que surgem na nossa frente e nos causam calafrios de fruição estética. Entre elas, cito todas as cenas que utilizam o recurso do teatro de sombra, como o coito de Luiz com Roseta, a vaca de Teodoro. As aparições da alma de Luzia também são momentos inebriantes de poesia plástica e a masturbação de Luiz com o sabugo de milho funde o instinto, a sensualidade e a força agreste da personagem.

A potência da escritura cênica de Nildo Garbo é tão grande que ele chega, ao meu ver, a fazer um paralelo imagético com a tragédia grega “Prometeu acorrentado”, de Ésquilo: Luiz (Prometeu) recebe o castigo de Zeus (Teodoro) por ter “roubado” o fogo (sua liberdade).

Há, porém, um elemento que rompe com esta harmonia sensório-visual tão potente no espetáculo: a máquina de gelo seco. O ruído que ela provoca ao expelir a fumaça e a forma como esta adentra a cena são danosos à poética do espetáculo, pois quebram abruptamente a imersão do espectador naquele universo.

Ademais, tal ambiência poderia ser provocada por outros instrumentos mais conectados com a proposta, como o incenso utilizado em igrejas, que, além de emanar fumaça, traz um aroma que dialoga diretamente de forma sensorial com o todo da encenação. Este é um ponto para se refletir em prol da organicidade da cena.

Outro elemento que prejudica em demasia a poética do espetáculo é a escolha das músicas. A trilha sonora destoa de toda a concepção do espetáculo e parece estar muito mais referenciada na relação pessoal do diretor diante de sua história de vida, do que com a peça em si. Há um estranhamento negativo entre proposição visual e sonora que deve ser repensado.

Inclusive, é de se estranhar que na ficha técnica do programa da peça não haja o nome de quem concebeu a trilha sonora do espetáculo, fazendo-me crer que foi o próprio encenador quem o fez. Neste caso, um auxílio de alguém especializado em música para a cena seria bem-vindo. Definitivamente, a sonoplastia não ressoa na dramática da cena.

Apesar dessas observações que, a meu ver, são importantes e devem ser levadas em conta, a encenação de Nildo Garbo é ajustada, profunda, profética e, mesmo com sua positiva grandiloquência cênica, ele não perde de foco o cerne do teatro: o trabalho do ator.

Garbo se apodera de seus intérpretes com a mesma soberania com que constrói todo o universo de sua obra cênica. Com suas mãos de oleiro, esculpe criaturas que guardam dentro de si uma ancestralidade latente a ponto de explodir diante de nossos olhos. Sua mão de diretor liberta os atores descaracterizando-os para que as formas internas de seus personagens se corporifiquem e ganhem vida.

E como se não bastasse, Garbo orienta seus pupilos de forma certeira para um dos pontos mais frágeis do teatro pernambucano: a oratória cênica. É na conjunção rítmica de personagem/rítmica textual que o encenador embasa sua proposição de espetáculo visceral e orgânico. O tempo-ritmo impresso nas interpretações e nas falas textuais são de um rigor extremo.

O espetáculo possui um sotaque próprio. Não se trata de um sotaque caruaruense, sertanejo ou pernambucano, mas cênico, de uma musicalidade contundente. É música. As vozes viscerais que emergem das personagens vêm de um organismo em ebolição, animal, instintivo e dramático, preenchido de sensações e sentimentos.

Há que se evidenciar também seu trabalho primoroso de deslocamento espacial, de consciência dinamo-rítmica (termo conceituado por Decroux) dos corpos em cena, nas relações entre as personagens e os espaços, proporcionando momentos fascinantes de puro deleite, como nas movimentações da cena na qual Teodoro ensina o alfabeto a Luiz.

E isto me faz ficar mais fã de Nildo Garbo. Ele investe sua energia em todos os pontos importantíssimos desta arte plural que é o teatro. E o ponto mais central é, indubitavelmente, o intérprete. Ele sabe disso...

 

Severino Florêncio é como vinho...

            Como havia dito, vou tratar de um tema que é muito caro – o trabalho do ator –, através de uma personalidade marcante da cena pernambucana: Severino Florêncio. Tive a oportunidade de conhecê-lo há vinte anos atrás, no momento em que era dirigido por José Manoel no espetáculo “Avatar”, texto de Paulo Afonso Grisolli. Desde lá, nutri por Florêncio um carinho e uma admiração enormes. Não à toa. Naqueles poucos encontros que tivemos e ensaios a que assisti, aprendi muito sobre o trabalho do ator, através de sua disciplina, dedicação e entrega ao teatro. Era simplesmente um encanto vê-lo elaborar com tanta minúcia sua relação com o personagem, com as colegas de cena, com o palco.

            Depois, passei a acompanhá-lo de longe, mas sempre atento e torcendo pelo sucesso de seus projetos. Minha companhia, a Cia. Buffa de Teatro, chegou a levá-lo a Salvador para uma curta temporada de “Diário de um louco”, de Nikolai Gogol e encenação de Nildo Garbo, já seu parceiro de criação.

            Anos se passaram e eu pude reencontrá-lo nos palcos em “Deus Danado”. Confesso que fui completamente arrebatado pelo amadurecimento de seu trabalho, pelo nível de consciência cênica e domínio técnico que o faz enigmático e irreconhecível na defesa de sua composição. Sim, ele está incluído entre os atores que podemos chamar de compositores, como cunha Matteo Bonfito. Excelência artística e ética que só dá mais brilho à sua arte.

Florêncio labuta com tanta devoção no seu ofício de ator-criador que consegue a proeza de construir um sertão mítico na alma de seu personagem. Seu alter ego Teodoro é muito maior que um personagem, muito mais amplo do que sua própria vida. É um jorro de sutilezas, de detalhes, de musicalidade, de ressonâncias que reverberam em nosso âmago.

            Definitivamente, Severino Florêncio é como o vinho: quanto mais o tempo passa, mais incorpado e saboroso é. Vê-lo em cena revigora a crença de que teatro é sacerdócio, mas um sacerdócio prazeroso, pleno de amor e entrega. É um regojizo à alma de qualquer artista. Sua atuação é um concerto para os olhos e ouvidos. Um espetáculo-aula, um espetáculo-alma.

            Disse em público e agora registro aqui: Severino precisa de um livro sobre sua trajetória. Um livro que deixe para a posteridade sua forma de ver o teatro, sua prática e sua forma de encarar seu ofício, suas experiências e procedimentos de construção de personagem. Severino é uma escola ambulante. Escola rigorosa quando o assunto é criação artística. Escola generosa quando o assunto é dividir a cena, mesmo que com os que têm bem menos experiência do que ele.

 

Gerações emaranhadas do teatro caruaruense

É aqui que entra o outro lado essencial do trabalho do ator: o ato de compartilhar. Severino Florêncio sabe que, antes de tudo, a arte do intérprete é a arte da doação. O grande artista é aquele que se doa a um público. E no teatro, antes disso, o ator se doa ao universo do autor, à ideia do encenador, à relação com seus parceiros de cena, para, por fim, ser ofertado aos espectadores. É doação total e intransferível.

E Florêncio encontra seu oposto complementar em “Deus Danado”, o jovem ator Rafael Amâncio. São anos de diferença que separam estes dois artistas em suas experiências de vida, suas vivências teatrais. Há sempre um grande risco quando se aglutinam em um mesmo espetáculo dois atores tão diferentes em suas escolas. A escola de Rafael Amâncio, certamente, não é a mesma que a de Severino Florêncio. São mais de vinte anos que separam a prática artística dos dois. Nem a escola da vida é a mesma, nem a da cena.

Mas o direcionamento dado por Nildo Garbo aos atores e a enorme generosidade de Severino Florêncio conseguem equacionar o que seria um problema. Vejo claramente em cena que a trajetória de aprendizado de Luiz com Teodoro é muito similar à de Amâncio com Florêncio. Parece até a união de sabores de uma irresistível sobremesa: Amâncio com Florêncio... Florêncio com Amâncio... Hummm... E é delicioso vê-los em cena.

Conheci Rafael Amâncio como ator no tal curso dado por mim. À primeira vista já pude perceber sua seriedade e disponibilidade em aprender, seu desejo altamente profissional de se qualificar cada vez mais, sua sede de descoberta, de conhecimento, de clareamento das ideias, assim como Luiz. Assim como eu também, há vinte anos atrás.

“Deus Danado” é o ápice de uma prática muito especial de se fazer teatro em Pernambuco: a de um aprendizado genealógico e não institucionalizado. Ainda hoje, da capital ao interior, a transmissão de conhecimentos e de ofício no teatro – para o bem e para o mal – se dá através da hereditariedade. E falo aqui de uma genealogia foucaultiana, na qual os laços de parentesco não são, necessariamente, consanguíneos, mas afetivos, vivenciais, relacionais. Trata-se de uma genealogia histórica. Sim, estamos fazendo história, estamos vivendo história.

Assim como na própria sobrevivência da chamada cultura popular, na qual os mestres vão passando seus ensinamentos aos seus discípulos até que eles possam também repassá-los, tornando-se novos mestres e, ao mesmo tempo, formando novos mestres, vejo através deste espetáculo a materialização de uma prática milenar e eficaz.

O mestre Nildo Garbo, formado por outros, já mestrou muitas “brincadeiras” e assim já ensinou sua arte a muita gente. Segundo o grande artista-brincante Sebá, o premiado encenador Vital Santos aprendeu – e muito – com Garbo.

Severino Florêncio transformou-se em mestre pelas mãos de muitos artistas e educadores, como José Manoel, Gilberto Brito e o próprio Nildo Garbo. Mas ele já trazia em si um “gênio”, uma severidade que não o deixaria apenas como aprendiz. Ele trazia a chama viva do conhecimento carnal impregnada no seu corpo, nas suas experiências nessa região arisca e prenhe de ensinamentos. Ele já possuía uma verve que o alçaria ao nível de um mestre do palco.

Rafael Amâncio entrou nesta seara temeroso. Ele sabia exatamente com quem estava se metendo. Sabia quem mestrava e quem aprendia. Ele foi danado também. Assim como Luiz, ele foi vencendo os medos, os tabus, foi vivenciando intensamente cada momento de descoberta, de aconselhamento, de aprendizado. Está longe de se tornar mestre. Mas tem um caminho inicial mais do que honrado, louvável.

Seu trabalho e sua entrega contribuem para que ele possa dialogar artisticamente com esses mestres sem deixar a desejar. Pulsante, potente, visceral, ele emociona, apaixona, excita. Seu Luiz possui uma rudeza plena de sensualidade, de sabor. É de uma inteireza consternante em cena.

Porém, há um dado que o aprendiz precisa trabalhar para alçar voos mais longínquos e profícuos em sua arte: a atenção à carga dramática enfatizada no rosto, criando, muito mais do que expressão, máscaras faciais que fragilizam a verdade interna da personagem.

O ator, consciente do envolvimento de todo o corpo no trabalho de interpretação, deve deixar o rosto como um meio de transmissão do que todo o corpo expressa, e não torná-lo uma redundância dos impulsos e sensações internas. A percepção de um rosto lívido que recebe as informações de um conjunto orgânico e as repassa para um público, sem excesso e sem pesar, é muito mais intenso do que carregar o rosto de emoção.

Várias técnicas de teatro podem auxiliar nesta pesquisa, como diversos treinamentos com máscara, da neutra às larvárias, das dell’arte ao clown. É neste ponto que uma escola formativa pode acrescentar saberes a uma sistemática de perpetuação genealógica e contribuir sobremaneira para o crescimento do artista cênico.

Mãos à obra, Amâncio!!

A outra ponta desta genealogia está fincada na sutileza, no feminino. É Welba Sionara, que, com muita delicadeza e anos de estrada, corporifica a alma de Luzia, figura iluminada e iluminante que traz a luz a Luiz e o faz senhor de seu passado. Sionara impõe uma qualidade transcendente à sua personagem etérea, numa conjunção difícil entre leveza e força dramática interna. Suas aparições são de extrema doçura e poeticidade.

Nildo Garbo conseguiu harmonizar quatro gerações em seu “Deus Danado” – representadas por ele, Florêncio, Sionara e Amâncio –, construindo uma obra que emaranha uma história viva das práticas cênicas de Caruaru, proporcionando um nível de atuação que aproxima e integra atores de diferentes gerações.

Um bálsamo provindo da dor

Como nos diz o próprio autor da trama, “[...] a encenação espera tocar no escuro de cada espectador. Escavacar no arcaico de cada um. No desconhecido.” Tanto ele quanto Garbo conseguem tal intento. Ambos conseguem penetrar na alma perplexa da plateia, que, ao final do espetáculo, da história de dor e sofrimento desses dois arquétipos sertanejos e universais, se regozija com o bálsamo de beleza e poesia que só o poder do teatro é capaz de suscitar. “Deus Danado”, de Denys/Garbo, não só toca: avassala.

 

Espetáculo Dorotéia Vai à Guerra | Grupo de Teatro Arte em Cena

Dorotéia Vai à Guerra completa 18 anos de vida

A V Mostra Capiba de Teatro trouxe para o palco do Teatro Capiba o tão premiado espetáculo caruaruense, Dorotéia vai à guerra, que, neste ano, completou sua maioridade: 18 anos de estrada, com alguns intervalos. A direção do espetáculo é de Gilberto Brito e no elenco encontram-se Severino Florêncio, no papel de Dorotéia, desde a primeira temporada; e Welba Sionara, como Madalena, personagem interpretada anteriormente pela atriz Maria Alves.

O texto, do mineiro Carlos Alberto Ratton, inscreve-se na linhagem dos dramas bem urdidos, que põem em jogo as relações de poder entre mulheres, a exemplo de A Casa de Bernarda Alba, de Federico Garcia Lorca, e, mais recentemente, Flores d'América, de João Denys Araújo Leite. São duas as personagens desse drama de Ratton: Dorotéia, uma velha mãe que exerce seu autoritarismo sobre a filha, Madalena, a qual, por sua vez, vive sob o jugo materno, sufocando, assim, seus desejos mais íntimos.

Esse autoritarismo de Dorotéia traz os ecos de um passado humano matriarcal, em que a mulher-mãe centralizava todo o poder da família ou da comunidade. Os abusos do patriarcalismo se equivalem aos de um matriarcalismo centralizador, de forma que é o próprio exercício do poder autoritário o que se impõe como objeto de discussão em Dorotéia vai à guerra.

No espetáculo de Brito, chama a atenção o elogiável trabalho de Severino Florêncio na criação de sua personagem. O ator vive Dorotéia com intensidade, mas com economia das emoções e de gestos, traçando uma composição corporal plasticamente minuciosa. Severino encontra-se em pleno amadurecimento no desempenho da personagem Dorotéia, a qual vem desempenhando há 18 anos. Tive a oportunidade de vê-lo no mesmo espetáculo em 1994 e, descontando a memória comprometida pelo tempo e o meu olhar imaturo à época, lembro-me que o impacto de sua atuação não fora tão grande quanto me pareceu agora.

A meu ver, Gilberto Brito é, antes de mais nada, um grande diretor de ator, algo tão raro de se encontrar em nosso métier. Fica claro no trabalho de Severino um processo intenso de construção de personagem, facilitado por Brito, que, além do ofício de diretor, é também um grande ator, dos poucos que em nosso contexto dominam a técnica. Brito se valeu, dentre outras, das técnicas da biomecânica para dirigir seu ator, alcançando um efeito impactante.

Do ponto de vista da interpretação, fica patente, no entanto, a assimetria entre Severino Florêncio e Welba Sionara, que participou da montagem desde os primórdios na função de sonoplasta e passou a assumir, recentemente, o papel de Madalena, depois que Maria Alves saiu do processo. Apesar de demonstrar na cena força dramática, a atriz titubeia no desenho final de sua personagem, incorrendo, por vezes, no lugar-comum. Vê-se que Britto não teve tempo de prepará-la para o papel. Como bom ator e bom diretor, ele sabe que, para o intérprete, é mais fácil trabalhar a personagem Dorotéia do que a Madalena. Não quero, com isso, desmerecer o trabalho de Severino. Quero dizer que o drama oferece muito mais elementos para o ator construir Dorotéia do que oferece para a outra. Mesmo que Sionara tenha uma grande intimidade com o espetáculo, pois faz parte do processo há anos, e seja dotada de talento, precisa de um olhar externo para conduzi-la na interpretação de Madalena. Essa poderá ser a próxima missão de Brito, caso tenha interesse de manter o espetáculo na estrada.

O Grupo de Teatro Arte em Cena está de parabéns pelos 18 anos de seu espetáculo Dorotéia vai à guerra. Que venham mais 18 anos de vida!

03 de dezembro de 2011

Por Bruno Siqueira.

 

Com os pés nos anos 1990

Há 27 anos, 37 meses e não sei quantos dias, Madalena vive um aperreio de vida. Tem uma mãe que, vamos combinar, ninguém merece. Dorotéia faz questão de mostrar que quem manda, não só na casa, mas em Madalena, é ela. Esse é o mote da montagem Dorotéia vai à guerra, do Grupo de Teatro Arte Em Cena, de Caruaru, apresentada no segundo dia da V Mostra Capiba. Na realidade, Severino Florêncio (Dorotéia) e Welba Sionara (Madalena) já tem intimidade com o texto há vários anos. Severino montou a peça em 1993 ao lado da atriz Maria Alves e ficou em cartaz por dez anos. Welba integrava a equipe técnica da montagem. Foi um grande sucesso na década de 1990, abocanhou prêmios em vários festivais – Severino nem tem certeza de quantos, acha que foram 32.

Remontar um desses grandes sucessos, uma peça em cartaz por tantos anos, levanta muitos questionamentos e dispara desafios. Para Welba, porque viu Maria Alves atuar, mas tem que criar a sua própria Madalena. Mas principalmente para Severino que, segundo o próprio diretor (das duas montagens) Gilberto Brito, tem no personagem um divisor de águas na sua carreira. Então porque voltar? Porque não se debruçar sobre um texto novo, encarar um personagem que fosse acrescentá-lo ainda mais, um processo diferente?

São só provocações...e, como mesmo diz Dorotéia, "a verdade tem muitas variantes". Fato é que o tema e as discussões que podem ser geradas a partir do texto continuam pertinentes. São as relações de poder e dominação e de que forma elas podem ser superadas. Se Severino domina perfeitamente as nuances da sua Dorotéia, tão cruel, mimada, Welba deixa transparecer que a sua interpretação ainda pode crescer – o espetáculo estreou em março. Em muitos momentos, texto e emoção ainda estão em descompasso: o "mamãe" precisa soar mais natural, mais engendrado na atriz.

Parece também não estar bem resolvido o tom da comédia. Há ironia no texto, claro que sim, mas em alguns momentos a dúvida parece pairar: é um drama ou uma comédia? É um drama que se transformou em comédia? É aí o público não consegue, quando deveria, embarcar no riso. Acha muito absurda toda aquela situação ali encenada, tem pena de Madalena, raiva da mãe, raiva de Madalena por não conseguir se libertar, mas não consegue se divertir com o humor negro de Dorotéia ou se sentir vingado quando Madalena parece assumir o controle.

A cena se passa numa casa antiga, sob as vistas dos santos na parede, dentro de um quarto. Um baú, uma cadeira e uma cama são os principais elementos de cena. Mas a encenação é mesmo muito baseada na construção dos atores. E fica a impressão de que a montagem – não vi a anterior, é bom que se diga – caminha nos trilhos e moldes da década passada. Não vou usar de ironias ou eufemismos, como propõe Dorotéia. Saí do teatro com vontade de ver um ator tão competente quanto Severino, tão engajado na luta pelo teatro no interior, se arriscar ainda mais – se retirando da sua própria zona de conforto e, certamente, nos deixando desconcertados.  

03 de dezembro de 2011

Por Pollyanna Diniz

 

Teatro de ator – atua(ações) de composição

"É preciso ser senhor do imaginário em cena"

Lee Thalor – ator do CPT (Centro de Pesquisa Teatral)

Assistir o espetáculo Dorotéia vai à guerra é refletir sobre como o trabalho do ator é o elemento central do teatro. Essa montagem foi apresentada na V Mostra Capiba de Teatro e conseguiu impressionar por sua força na atuação.

A peça do Grupo de Teatro Arte em Cena estreou em 1993 e agora em 2011 recebeu uma remontagem que conta novamente com o ator Severino Florêncio e a novidade é a presença da atriz Welba Sionara. A excelente direção é ainda de Gilberto Brito. 

O texto do mineiro Carlos Alberto Ratton apresenta a história de Dorotéia e Madalena, que vivem à beira de um ataque de nervos. Dorotéia é opressora e tirânica, patética e trágica, é uma radiografia do ser humano em crise existencial e de relacionamento, caracterizada pelo sentimento de possessividade. 

Madalena, sua filha, é a vítima que, ao mesmo tempo em que nos revela através de suas reações sua posição de antagonista, é apagada e esmagada pela poderosa personalidade da mãe. 

A encenação de Gilberto centra na correlação de forças desses personagens – mostrando não apenas suas vidas, mas suas almas. Assim uma cena expressionista é desenhada, pensada e apresentada. Para tanto, a escrita cênica é objetivada na composição atorial. 

E coloca essa ideia de composição como um espaço de planejamento, combinações, construções e execução de partituras de ações. Há um desenho de intenções que amplifica e dilata a atuação. 

O trabalho de Severino Florêncio na montagem é quem melhor consegue dialogar com esses materiais e matrizes de interpretação propostos pela escrita cênica. Pois ele tem uma presença que assume e amplifica os significados do texto, dando um caráter metafísico da atuação. 

A partitura corporal e vocal de Florêncio estabelece uma instabilidade na leitura do espectador, ajudando em um estado de surpresa constante. É um jogo de golpes teatrais, que não permite o congelamento de um olhar único sobre a personagem da Dorotéia. A composição de Severino é um grande trabalho de ator – excelente, forte e marcante. 

A atriz Welba Sionara constrói Madalena a partir da concepção de uma humanização, então seu trabalho se aproxima de uma matriz mais realista, caracterizando por uma leveza maior na elaboração de sua personagem.

 Essa escrita atorial da intérprete ajuda por um lado em uma maior comunicação com os espectadores, mas por outro faz aparecer alguns problemas da escrita dramatúrgica, principalmente relacionados com uma tensão entre um pensamento preso a uma época e uma forma que está alicerçada no drama burguês; o que pode sustentar na cena um conceito fechado e datado de opressão.

Mas esses momentos não destroem a importância dessa encenação que centra seus desejos em um teatro de ator. Algo que hoje nas necessidades de um teatro de grupo tem sido apagado esse grande trabalho atorial - prevalecendo muito mais uma cena em coro, coletiva, uniforme. Coloco esse último parágrafo como um lugar de provocação, não de verdade instituída.

03 de dezembro de 2011

Por Wellington Júnior

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